OUVINDO RÁDIO E LEVANDO A VIDA.
Outro episódio registrado em
minhas lembranças tem seu ponto de partida também numa barca da Cantareira, ou refrescando sua memória: aquelas barcas, movidas a vapor e impulsionadas por rodas laterais e que levavam, às vezes, mais de uma hora para fazer a travessia Rio-Niterói.
Como tenho dito, a influencia do rádio na vida social do brasileiro era muito grande, pois o rádio era o maior veiculo de comunicação da época. O rádio marcou não apenas minha infância, mas a vida de milhões de brasileiros.Por esse motivo é que passagens de nosso cotidiano vinculam-se muitas vezes a este ou àquele programa de rádio. Vou narrar a seguir mais alguns desses fatos.Mais vez vinculados a uma novela muito importante da época. Vamos à história.
Barca da Cantareira: ligação Rio-Niterói em uma hora
Interior da barca: conforto art dèco dos anos 30/40
AS TRANÇAS DE MADALENA E AS ENCHOVAS DA SEMANA SANTA.
Uma das novelas que sucedeu a Em busca da felicidade no horário das
dez e meia da manhã, foi As tranças de Madalena, que tinha Ísis
de Oliveira no papel título. Certa manhã, como acontecia nos finais de semana
eu e minha mãe pegamos a barca na praça
Quinze de Novembro para chegar a tempo de ouvir a novela do outro lado da baía.
Desembarcamos na praça Araribóia e
rumamos para um café que havia na esquina da avenida Amaral Peixoto.
Praça Araribóia em Niterói
Praça Araribóia nos anos 60:
O bar de nossa história ficava onde foi levantado o prédio em primeiro plano.
Proximidade da estacão das barcas em Niterói.
Praça Araribóia nos anos 50:
bondes circulavam por toda a cidade e iam até São Gonçalo
Lá estava
um rádio ligado em alto volume, transmitindo
As tranças...Que uma pequena
multidão de radiocalçadas ouvia com
atenção. Entramos no café e minha mãe pode acompanhar a
novela, enquanto eu saboreava um daqueles deliciosos bolinhos que os bares
vendiam e que ficavam sob uma redoma de vidro sobre as mesas, acompanhado de uma xícara de café com
leite. Quando a novela acabou , a
multidão se dissipou, dona Áurea pagou a conta e me disse:
-Betinho, agora vamos naquela
barraca comprar um peixe para eu preparar para domingo na fazenda.
Se o mercado informal nos dias de
hoje é uma tônica, imagine naqueles tempos de pós-guerra. Por isso havia na
calçada que dava para o mar uma quantidade de barracas que vendiam o peixe
fresco que vinha do entreposto da
praça Quinze. Minha mãe escolheu umas
lindas enchovas com mais de dois quilos,
que o barraqueiro embrulhou em várias folhas de jornal. Não se espantem, mas
naquela época ainda não havia sido inventado o plástico e o papel de embrulho
era artigo de luxo. Nos tempos bicudos do pós-guerra era tudo embrulhado em
jornal mesmo.
Rumamos para o terminal do ônibus
e embarcamos na viação Cabuçu, rumo ao Rodo de São Gonçalo.
Quando o ônibus chega ao bairro
de Neves, um passageiro salta carregando um peixe embrulhado em jornal. Imaginando
que aquele era o seu peixe, minha mãe
interrompe a saída do veículo e interpela o passageiro que já estava na
calçada:
- Senhor, será que este peixe não é o meu?
Ao que ele respondeu a distância:
-Não senhora. Esse peixe é meu. Comprei nas barcas de Niterói.
-Pois eu também! E não estou
encontrando o meu embrulho.
Um pequeno alvoroço se instala no ônibus, que
não estava lotado. O motorista sai do seu posto e junto com os passageiros se
propõe a esclarecer o incidente, procurando o embrulho. Para resumir: o peixe
de dona Áurea estava caído no chão, sob dois acentos adiante de onde estávamos.Era na realidade um embrulho
igualzinho ao do homem o que havia
gerado a dúvida de minha mãe.
Desfeito o mistério, foi uma
risada geral, inclusive do homem da calçada, que felizmente, levou tudo na
esportiva.
No domingo,na Fazenda Boa Vista em São Gonçalo, sintonizada no Programa Casé, toda a família Salvador,
festejava a Páscoa saboreando enchovas preparadas por dona Áurea em meio a
muitas gozações pelo ocorrido.
Proximidades do Rodo de São Gonçalo.
São Gonçalo antiga:
trilhos de bondes iam até Alcântara
O elenco de radioteatro recebia direto dos anunciantes o mesmo
ocorrendo com Vitor Costa. O faturamento da rádio deu um pulo, os horários das
novelas aumentaram e a audiência idem.
A PRE-8 era líder em todo o
Brasil. Chegaram novos transmissores de ondas curtas além da onda média e a cobertura
era nacional.
anunciava a novela das nove
Talco Ross, "aquele que é micropulverisado",
anunciava novelas no horário diurno
Ghiaroni, ainda jovem, foi importante novelista da Nacional
Oduvaldo Viana, aqui com seu filho, Vianinha:
talento de pai para filho.
Os autores que mais se destacaram
nessa faixa foram Oduvaldo Vianna, Amaral Gurgel e Ghiaroni
Duas novelas, entre as muitas que fizeram enorme
sucesso foram “A bela e a fera” e A gloriosa mentira “esta última de Guiaroni”.
Numa dessas novelas, não sei qual
das duas, havia um personagem cômico, alegre,
vivido pelo grande Walter Dávila. Era o doutor Memeco, que ao formular
qualquer frase. Tinha um cacoete que o fazia dizer
- “Meco! Meco-meco”!
E depois dizia o que tinha que dizer.
“A gloriosa mentira” tinha Ismênia dos Santos e Celso Guimarães como o casal de mocinhos.
Destaque para Floriano Faissal
que interpretava um tio, apaixonado pela sobrinha (Ismênia dos Santos) .
Numa noite,no clímax da novela,
um dos capítulos termina com o tio, embriagado, querendo agarrar a moça para
beijar. A cena foi forte, pois a contra-regra arrastava cadeiras, louça se quebrava, com
ela tentando se desvencilhar,
enquanto se ouvia o personagem de Floriano gritar:
-Venha cá ! Quero beijar estes
lábios carnudos e vermelhos!
Este rosto lindo e macio !
E a moça gritava e fugia:
-Não meu tio ! Não faça isso !
Ao fundo, a sonoplastia executava
uma música agitada e dramática que se fundiu com
O sufixo da novela.
No dia seguinte à transmissão houve
reação do público. Muitos
protestos escandalizados enquanto
outros, veladamente, invejando o tio tarado, pois a voz de Ismênia dos
Santos era uma tentação de tão linda.
Confesso que até hoje não consigo
aceitar aquela “escorregada” de “A
gloriosa mentira”. Foi uma cena
forte, embora em uma novela às 9 da noite. (Naquela época as crianças dormiam
cedo). Não consigo compreender simplesmente pelo fato de que os padrões de
autocensura na emissora eram muito fortes. E o próprio Floriano, que
interpretou a cena, se transformaria, mais tarde, num zeloso guardião da ética
e da moral no radioteatro que ele veio a dirigir, como veremos um pouco mais
adiante.
Leio, com algum a frequência, que
as novelas do velho rádio evitam tocar
em determinados assuntos tabus para a época. Realmente as novelas jamais
falavam de homossexualismo. Este era abordado apenas de forma jocosa nos
programas humorísticos como acontece até hoje na televisão.O mesmo acontecendo com determinados
tipos de preconceito que estavam
presentes a todo instante, ridicularizando o negro, o nordestino, o imigrante,
o gago, o surdo ou o mudo. Isto era mais evidente nos programas de humor.
Celso Guimarães:
fundador da emissora, locutor e galã de novelas
Floriano Faissal:
gênio e talento na direção do radioteatro
Ismênia dos Santos, mulher de Vitor Costa na vida real.
Foi uma das maiores vozes do radioteatro.
Walter Dávilla começou no rádio...
...e depois sucesso na televisão.
O adultério, a suposição de
incesto, a curra ou a tentativa de
estupro, volta e meia rolavam, embora em cenas veladas ou levemente sugeridas ou referidas, especialmente nas
novelas noturnas. Esses assuntos não eram tratados de forma explícita. Eram
apenas “sugeridos” com habilidade pelos novelistas. O restante ficava por conta
da imaginação do ouvinte
Embora, palavra amante
não fosse citada, o adultério, a
traição, os triângulos amorosos era uma constante. Cá pra nós, caso contrário
as histórias seriam uma enorme chatice.
Se as relações sexuais eram
apenas sugeridas nos filmes, não seria o rádio que as explicitaria. Assim,
gritos e sussurros para sugerir atos sexuais
eram muito discretos ou praticamente ausentes. O máximo que acontecia
era um beijo mais demorado com os atores
inspirando e em seguida prendendo a respiração por dois segundos e
expirando juntos. Esse era o beijo “cinematográfico” através do rádio.
Meu amigo Sérgio Rubens que
trabalhou comigo no Clube Juvenil Toddy
me conta que ele soube na ocasião que a atriz
Lygia Sarmento foi advertida pela direção da rádio por ter se excedido
em sussurros durante a cena de um
caloroso beijo de amor.
Lygia era uma excelente atriz que
começou em teatro aos 16 anos na década de vinte. Trabalhou na Companhia Jaime
Costa, quando viajou pelo Brasil inteiro. Entrou para o cinema em 1931 com
“Alvorada da Serra”. Depois fez “O jovem
tataravô” e “Segredo das asas”. Era,
portanto, uma estrela, quando entrou para
o radioteatro da Nacional nos anos 40. Era uma figura encantadora na
vida real, mas nas novelas era muito escalada para fazer o gênero megera.
Morreu em 2007, aos 94 anos por ironia, um dia após a morte de Ghiaroni que morreu aos 89 anos.
Lígia Sarmento: talento no cinema, teatro e rádio
Do Anuário do Rádio, publicado
em 1956, consta a seguinte declaração de Floriano Faissal o mesmo que 10 anos
havia protagonizado a cena do “ataque” à sobrinha.
As novelas da Rádio Nacional se caracterizam sempre pela boa qualidade.
Não admitimos a irradiação de textos negativos, destrutivos e em conseqüência
indignos. Há assim, muita vigilância em torno das novelas programadas. Quer um
pequeno detalhe? Ei-lo: não se permite na Rádio Nacional que o vocábulo
“amante” apareça no texto de uma novela.
E na mesma publicação, há este
depoimento de Sérgio Vasconcelos, outro diretor da emissora:
Na Rádio Nacional procuramos educar o público também através das
novelas, incutindo no ouvinte bons
sentimentos, maneiras corretas de agir em sociedade. Quero
apenas demonstrar que é assim que a Rádio Nacional educa, levando o ouvinte a
repelir o mal e aplaudir o bem.
Minha aluna da Faculdade Moacyr
Bastos, Cátia dos Santos Machado, em novembro de 2004 escreveu uma interessante
monografia sob o título: “A Rádio
Nacional fazendo a alegria dos cariocas no final da década de 1940”.
No tocante à moralidade das
novelas da época, extraio mais este
trecho.
“Na realidade a Nacional
constituía-se assim, em um importante instrumento de influência na opinião pública. A respeito, Miriam Goldfeder afirma
que a emissora fazia parte de um
mecanismo de controle social, ‘destinado a manter as expectativas sociais
dentro dos limites compatíveis com o sistema como um todo’. A mesma autora
pondera: ‘ O que a Rádio Nacional propagava, em última instância, não era a
excelência de um modelo político, mas a legitimidade de um tipo de sociedade e
de um quadro de valores éticos’”.
Atores da Nacional:
Castro Viana, Rodolfo Mayer, Roberto Faissal,Olga Nobre, Floriano Faissal e Castro Gonzaga. Foto dos anos 50 no estúdio de radioteatro.
O velho rádio se constituía numa espécie de fundo sonoro no cotidiano das famílias da classe média dos anos trinta até meados dos anos 60, quando cedeu seu espaço para a televisão. Pautava acontecimentos e fazia parte do cotidiano dessas pessoas. Levava música, arte, radioteatro, anunciava produtos e transmitia noticias. Além de ser uma testemunha ocular da história, o rádio era a própria história.
o RÁDIO foi meu companheiro inseparável, não importava a hora, nem o que eu estivesse fazendo. O rádio não é egoísta nem exclusivista como a televisão. Deixa você levar a sua vida e enriquece as suas horas.
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