terça-feira, 5 de janeiro de 2016

LEMBRANÇAS DO VELHO RÁDIO DOS ANOS 40 AOS 60.


OUVINDO RÁDIO E LEVANDO A VIDA.

   Outro episódio registrado em minhas lembranças tem seu ponto de partida também numa barca da Cantareira, ou refrescando sua memória: aquelas barcas, movidas a vapor e impulsionadas por   rodas  laterais e que levavam, às vezes, mais de uma hora para fazer a travessia Rio-Niterói.
   Como tenho dito, a influencia do rádio na vida social do brasileiro era muito grande, pois o rádio era o maior veiculo de comunicação da época. O rádio marcou não apenas minha infância, mas a vida de milhões de brasileiros.Por esse motivo é que passagens de nosso cotidiano vinculam-se muitas vezes a este ou àquele programa de rádio. Vou narrar a seguir mais alguns desses fatos.Mais  vez vinculados a uma novela muito importante da época. Vamos à história.

Barca da Cantareira: ligação Rio-Niterói em uma hora

Interior da barca: conforto art dèco dos anos 30/40

AS TRANÇAS DE MADALENA E AS ENCHOVAS DA SEMANA SANTA.

   Uma das novelas que sucedeu a Em busca da felicidade no horário das dez e meia da manhã, foi  As tranças de Madalena, que tinha Ísis de Oliveira no papel título. Certa manhã, como acontecia nos finais de semana eu e minha mãe pegamos a barca na  praça Quinze de Novembro para chegar a tempo de ouvir a novela do outro lado da baía. Desembarcamos na  praça Araribóia e rumamos para um café que havia na esquina da avenida Amaral Peixoto.

Praça Araribóia em Niterói

Praça Araribóia nos anos 60:
O bar de nossa história ficava onde foi levantado o prédio em primeiro plano.

Proximidade da estacão das barcas em Niterói.

Praça Araribóia nos anos 50:
 bondes circulavam por toda a cidade e iam até São Gonçalo


 Lá estava um rádio ligado em alto volume, transmitindo  As tranças...Que uma pequena multidão de radiocalçadas ouvia com atenção. Entramos no café e minha mãe pode acompanhar a novela, enquanto eu saboreava um daqueles deliciosos bolinhos que os bares vendiam e que ficavam sob uma redoma de vidro sobre as  mesas, acompanhado de uma xícara de café com leite. Quando a novela  acabou , a multidão se dissipou, dona Áurea pagou a conta e me disse:
-Betinho, agora  vamos naquela barraca comprar um peixe para eu preparar para domingo na fazenda.
   Se o mercado informal nos dias de hoje é uma tônica, imagine naqueles tempos de pós-guerra. Por isso havia na calçada que dava para o mar uma quantidade de barracas que vendiam o peixe fresco que vinha do entreposto da   praça  Quinze. Minha mãe escolheu umas lindas enchovas com  mais de dois quilos, que o barraqueiro embrulhou em várias folhas de jornal. Não se espantem, mas naquela época ainda não havia sido inventado o plástico e o papel de embrulho era artigo de luxo. Nos tempos bicudos do pós-guerra era tudo embrulhado em jornal mesmo.
Rumamos para o terminal do ônibus e embarcamos na viação Cabuçu, rumo ao Rodo de São Gonçalo.
   Quando o ônibus chega ao bairro de Neves, um passageiro salta carregando um peixe embrulhado em jornal. Imaginando que aquele era o seu peixe, minha mãe interrompe a saída do veículo e interpela o passageiro que já estava na calçada:
- Senhor, será que este peixe não é o meu?
Ao que ele respondeu a distância:
-Não senhora. Esse peixe é meu. Comprei nas barcas de Niterói.
-Pois eu também! E  não estou encontrando o meu embrulho.
 Um pequeno alvoroço se instala no ônibus, que não estava lotado. O motorista sai do seu posto e junto com os passageiros se propõe a esclarecer o incidente, procurando o embrulho. Para resumir: o peixe de dona Áurea estava caído no chão, sob dois acentos adiante de onde  estávamos.Era na realidade um embrulho igualzinho  ao do homem o que havia gerado a dúvida de  minha mãe.
Desfeito o mistério, foi uma risada geral, inclusive do homem da calçada, que felizmente, levou tudo na esportiva.
   No domingo,na Fazenda Boa Vista em São Gonçalo, sintonizada no Programa Casé, toda a família Salvador, festejava a Páscoa saboreando enchovas preparadas por dona Áurea em meio a muitas gozações pelo ocorrido.
Proximidades do Rodo de São Gonçalo.

São Gonçalo antiga: 
 trilhos de bondes iam até Alcântara

 ATIRE A PRIMEIRA PEDRA  ENTRE  BELOS, BELAS E FERAS
    Antes da metade dos anos quarenta e emissora da praça Mauá já havia colocado no ar mais de uma centena de novelas, todas elas patrocinadas e distribuídas a partir do tradicional horário  das dez e meia , entrando pela tarde, às 13 horas e chegando  no horário nobre. A Colgate-Palmolive  jogou suas novelas para as 8 da noite.                          
O elenco de radioteatro  recebia direto dos anunciantes o mesmo ocorrendo com Vitor Costa. O faturamento da rádio deu um pulo, os horários das novelas aumentaram e a audiência idem.
A PRE-8 era líder em todo o Brasil. Chegaram novos transmissores de ondas curtas além da onda média e a cobertura era nacional.
 Entre os novos horários  de novelas que a PRE-8 criaria nos anos quarenta  destacou-se  o de 21 horas. O patrocinador, um produto que existe até hoje, era anunciado pelo excelente locutor Aurélio de Andrade:
 “No ar a novela das nove, sob o patrocínio do Óleo de Peroba, o supremo renovador dos móveis”.

                                         Óleo de Peroba  "o supremo renovador dos móveis"
                                                                    anunciava a novela das nove

Talco Ross, "aquele que é micropulverisado",
anunciava novelas no horário diurno

Ghiaroni, ainda jovem, foi importante novelista da Nacional

Oduvaldo Viana, aqui com seu filho, Vianinha:
 talento de pai para filho.

Os autores que mais se destacaram nessa faixa foram Oduvaldo Vianna, Amaral Gurgel e  Ghiaroni
Duas  novelas, entre as muitas que fizeram enorme sucesso foram “A bela e a fera” e A gloriosa mentira “esta última de Guiaroni”.
Numa dessas novelas, não sei qual das duas, havia um personagem cômico, alegre,  vivido pelo grande Walter Dávila. Era o doutor Memeco, que ao formular qualquer frase. Tinha um cacoete que o fazia dizer
- “Meco! Meco-meco”!                                                                                                                E depois dizia o que tinha que dizer.
A gloriosa mentira” tinha Ismênia dos Santos  e Celso Guimarães como o casal de mocinhos.
Destaque para Floriano Faissal que interpretava um tio, apaixonado pela sobrinha (Ismênia dos Santos) .

Numa noite,no clímax da novela, um dos capítulos termina com o tio, embriagado, querendo agarrar a moça para beijar. A cena foi forte, pois a contra-regra arrastava cadeiras,  louça se quebrava,  com  ela tentando se  desvencilhar, enquanto se ouvia o personagem de Floriano gritar:

-Venha cá ! Quero beijar estes lábios carnudos e vermelhos!
Este rosto lindo e macio !

E a moça gritava e fugia:
-Não meu tio ! Não faça isso !
Ao fundo, a sonoplastia executava uma música agitada e dramática que se fundiu com
O sufixo da novela.                                                                                                                     No dia seguinte à transmissão houve  reação  do público. Muitos protestos escandalizados enquanto  outros, veladamente, invejando o tio tarado, pois a voz de Ismênia dos Santos era uma tentação de tão linda.
Confesso que até hoje não consigo aceitar aquela “escorregada” de “A gloriosa mentira”. Foi uma cena forte, embora em uma novela às 9 da noite. (Naquela época as crianças dormiam cedo). Não consigo compreender simplesmente pelo fato de que os padrões de autocensura na emissora eram muito fortes. E o próprio Floriano, que interpretou a cena, se transformaria, mais tarde, num zeloso guardião da ética e da moral no radioteatro que ele veio a dirigir, como veremos um pouco mais adiante.
Leio, com algum a frequência, que as novelas do velho rádio  evitam tocar em determinados assuntos tabus para a época. Realmente as novelas jamais falavam de homossexualismo. Este era abordado apenas de forma jocosa nos programas humorísticos como acontece até hoje na  televisão.O mesmo acontecendo com determinados tipos de preconceito  que estavam presentes a todo instante, ridicularizando o negro, o nordestino, o imigrante, o gago, o surdo ou o mudo. Isto era mais evidente nos programas de humor.
Celso Guimarães: 
 fundador da emissora, locutor e galã de novelas

Floriano Faissal:
 gênio e talento na direção do radioteatro

Ismênia dos Santos, mulher de Vitor Costa na vida real.
Foi uma das maiores vozes do radioteatro.

Walter Dávilla começou no rádio...

...e depois sucesso na televisão.



O adultério, a suposição de incesto, a  curra ou a tentativa de estupro, volta e meia rolavam, embora em cenas veladas ou levemente  sugeridas ou referidas, especialmente nas novelas noturnas. Esses assuntos não eram tratados de forma explícita. Eram apenas “sugeridos” com habilidade pelos novelistas. O restante ficava por conta da imaginação do ouvinte
Embora,  palavra amante não fosse citada,   o adultério, a traição, os triângulos amorosos era uma constante. Cá pra nós, caso contrário as histórias seriam uma enorme chatice.
Se as relações sexuais eram apenas sugeridas nos filmes, não seria o rádio que as explicitaria. Assim, gritos e sussurros para sugerir atos sexuais  eram muito discretos ou praticamente ausentes. O máximo que acontecia era um beijo mais demorado com os atores  inspirando e em seguida prendendo a respiração por dois segundos e expirando juntos. Esse era o beijo “cinematográfico” através do rádio.
Meu amigo Sérgio Rubens que trabalhou comigo no Clube Juvenil Toddy me conta que ele soube na ocasião que a atriz  Lygia Sarmento foi advertida pela direção da rádio por ter se excedido em sussurros durante a  cena de um caloroso beijo de amor.
Lygia era uma excelente atriz que começou em teatro aos 16 anos na década de vinte. Trabalhou na Companhia Jaime Costa, quando viajou pelo Brasil inteiro. Entrou para o cinema em 1931 com “Alvorada da Serra”. Depois fez  “O jovem tataravô” e  “Segredo das asas”. Era, portanto, uma estrela, quando entrou para  o radioteatro da Nacional nos anos 40. Era uma figura encantadora na vida real, mas nas novelas era muito escalada para fazer o gênero megera. Morreu em  2007,  aos 94 anos por ironia, um dia após  a morte de Ghiaroni que morreu aos 89 anos.
Lígia Sarmento: talento no cinema, teatro e rádio

Do  Anuário do Rádio, publicado em 1956, consta a seguinte declaração de Floriano Faissal o mesmo que 10 anos havia protagonizado a cena do “ataque” à sobrinha.
As novelas da Rádio Nacional se caracterizam sempre pela boa qualidade. Não admitimos a irradiação de textos negativos, destrutivos e em conseqüência indignos. Há assim, muita vigilância em torno das novelas programadas. Quer um pequeno detalhe? Ei-lo: não se permite na Rádio Nacional que o vocábulo “amante” apareça no texto de uma novela.
E na mesma publicação, há este depoimento de Sérgio Vasconcelos, outro diretor da emissora:
Na Rádio Nacional procuramos educar o público também através das novelas, incutindo no ouvinte bons  sentimentos, maneiras corretas de agir em sociedade. Quero apenas demonstrar que é assim que a Rádio Nacional educa, levando o ouvinte a repelir o mal e aplaudir o bem.
Minha aluna da Faculdade Moacyr Bastos, Cátia dos Santos Machado, em novembro de 2004 escreveu uma interessante monografia  sob o título: “A Rádio Nacional fazendo a alegria dos cariocas no final da década de 1940”.
No tocante à moralidade das novelas da época, extraio mais este  trecho.

“Na realidade a Nacional constituía-se assim, em um importante instrumento de influência na opinião  pública. A respeito, Miriam Goldfeder afirma que a emissora  fazia parte de um mecanismo de controle social, ‘destinado a manter as expectativas sociais dentro dos limites compatíveis com o sistema como um todo’. A mesma autora pondera: ‘ O que a Rádio Nacional propagava, em última instância, não era a excelência de um modelo político, mas a legitimidade de um tipo de sociedade e de um quadro de valores éticos’”.

Atores da Nacional:
 Castro Viana, Rodolfo Mayer, Roberto Faissal,Olga Nobre, Floriano Faissal e Castro Gonzaga. Foto dos anos 50 no estúdio de radioteatro.

O velho rádio se constituía  numa espécie de fundo sonoro no cotidiano das famílias da classe média dos anos trinta até meados dos anos 60, quando cedeu seu espaço para a televisão. Pautava acontecimentos e fazia parte do cotidiano dessas pessoas. Levava música, arte, radioteatro, anunciava produtos e transmitia noticias. Além de ser uma testemunha ocular da história, o rádio era a própria história.

Um comentário:

  1. o RÁDIO foi meu companheiro inseparável, não importava a hora, nem o que eu estivesse fazendo. O rádio não é egoísta nem exclusivista como a televisão. Deixa você levar a sua vida e enriquece as suas horas.

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